Um espectro translúcido e vagante – transpassado pela luz e orientado pelos ventos – ronda o Nordeste brasileiro: o espectro do desenvolvimento regional amparado na política global de transição energética. “Assombrados” por essa presença, governadores de seis estados nordestinos onde abundam empreendimentos energéticos de matriz solar e eólica vislumbram a possibilidade de converter a região em um novo pólo de industrialização do país.
É o que revelam os dados da pesquisa Vozes Silenciadas – Energias Limpas: o que a mídia silencia, organizada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, que analisou matérias de seis jornais regionais (Tribuna do Norte, A Tarde, Jornal da Paraíba, Meio Norte, Jornal do Commercio e Diário do Nordeste) entre janeiro de 2021 e junho de 2023.
A agenda global tem nas energias renováveis a alternativa mais urgente para frear o uso intensivo de combustíveis fósseis. Nesse sentido, conferências, fóruns e cúpulas internacionais vêm ocorrendo anualmente no intuito de debater os efeitos deletérios e devastadores das mudanças climáticas.
A Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) consiste na principal arena de discussão e negociação de acordos. Não à toa, o governo do presidente Lula vem marcando presença nesses espaços e reforçando o protagonismo global do Brasil na transição energética. Em razão de uma articulação liderada pelo mandatário brasileiro, a COP30, a ser realizada em 2025, terá como sede a cidade de Belém do Pará, localizada em pleno coração da Amazônia. Mensagem inequívoca, porquanto ser, aos olhos do mundo, a região sinônimo de sustentabilidade.
O presidente chegou a afirmar que o século 21 é o século da transição energética e que ninguém compete com o Brasil quando se trata desse assunto. Em síntese, a ideia defendida pelo governo brasileiro é que se o mundo – especialmente as potências do Norte global – pretende realmente realizar a transição de suas matrizes energéticas, o Brasil será o país a liderar esse processo por reunir condições favoráveis para a exploração de energias renováveis.
Em conformidade com o aceno do presidente à atração de investimentos internacionais do ramo de energias renováveis, e dotados de ambições de caráter desenvolvimentista, encontram-se os governadores de seis dos nove estados da região Nordeste que compõem a pesquisa: Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte. Estados em sua maioria controlados por partidos de esquerda (a exceção é o estado de Pernambuco, governado por Raquel Lyra, do PSDB) e que se destacam pela quantidade de “empreendimentos verdes”, pelo volume de recursos investidos nesse setor e pela produção de energia eólica e solar em seus territórios.
Discurso entrelaçado de governadores(as) e mídia
No Rio Grande do Norte, o apoio e investimento por parte do governo estadual em parques eólicos e usinas solares refletiu em uma representativa cobertura do jornal online Tribuna do Norte – um dos meios analisados pela pesquisa do Intervozes. A governadora Fátima Bezerra (PT) esteve na Europa, em 2021, para assinar acordos com empresas internacionais com interesse na instalação desses empreendimentos no estado.
Em uma das falas da governadora veiculadas em matéria do jornal potiguar Tribuna do Norte, ela frisou que a sua gestão não reconhece fronteiras quando se trata de “investimentos em empregos e garantia de desenvolvimento sustentável”. Essa conjunção econômica tem sido o principal discurso dos governadores dos estados nordestinos para justificar o investimento nas eólicas e usinas solares.
Em outro trecho dessa mesma matéria, publicada em 14 de novembro de 2021, a governadora alega que seu governo possui preocupação com o meio ambiente e solicitou às empresas multinacionais a realização de projetos para preservação, proteção e restauração da Mata Atlântica e do bioma Caatinga.
Líder na instalação de empreendimentos de energias limpas no Nordeste, o estado do Rio Grande do Norte agora investe na instalação de parques eólicos offshore (no mar). Para isso, conta com o empenho do atual presidente da Petrobrás, Jean Paul Prates, que enquanto senador pelo RN acompanhou a governadora Fátima Bezerra em suas viagens internacionais para firmar parcerias com empresas multinacionais e encaminhou projetos que viabilizassem a implementação de parques eólicos e usinas solares no estado.
No caso da Bahia, estado líder na geração de energia solar, o governador Jerônimo Rodrigues (PT) impulsionou a política de geração de energias renováveis de seu antecessor Rui Costa (PT) por meio da participação ativa da Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE) em projetos e assinaturas de protocolos.
Em 2023, o vice-governador Geraldo Jr. (MDB), representando o governador em um congresso sobre sustentabilidade, garantiu o alinhamento irrestrito do estado às políticas públicas do governo federal no setor. Para se ter noção do calibre de investimentos, somente em 2023 foram aplicados 11 bilhões do Novo PAC em energias renováveis. Em depoimento ao jornal A Tarde, o vice-governador reforçou a narrativa desenvolvimentista verde que embala os governos da região ao afirmar que “não há como se falar em desenvolvimento econômico, em desenvolvimento de um país ou estado se você não estabelecer discussões relacionadas ao meio ambiente sustentável”.
Na Paraíba, o governador João Azevedo (PSB) também tem sido um entusiasta desses empreendimentos. Em 2022, ele assinou um protocolo de intenções com a empresa dinamarquesa de energia eólica Vestas para instalação de parques nos municípios de Cacimba de Dentro, Araruna, Riachão, Cuité e Damião.
Em entrevista para o portal do Jornal da Paraíba, outro veículo analisado pela pesquisa Vozes Silenciadas, João Azevedo ressaltou que a Paraíba tem potencial na geração de energias renováveis e capacidade para atrair novos investimentos. Assim como sua homóloga potiguar, o discurso do governador paraibano também aborda o desenvolvimento sustentável ao enfatizar que a instalação desses empreendimentos representa a preparação do estado para o futuro.
Enquanto presidente do Consórcio Nordeste, Azevedo empenhou-se em divulgar o estado que governa com o objetivo de atrair investimentos das empresas multinacionais para a região. Para evitar a “fuga de investimentos no Nordeste”, os governadores da região, reunidos durante a Assembleia Geral do Consórcio Nordeste – realizada em João Pessoa em abril de 2023 e divulgada pelo Jornal da Paraíba –, enfatizaram que é preciso ampliar as linhas de transmissão. Para isso, segundo o governador, é preciso que haja uma mudança na legislação sobre os parques eólicos e que seja ampliado o prazo de autorização das outorgas.
Com relação ao estado do Piauí, a cobertura do jornal Meio Norte acerca da agenda do governador Rafael Fonteles (PT) em seu périplo pela Europa, em busca de celebração de acordos e fechamento de negócios, se deu de maneira diária e é sintomática da importância que o governo e o jornal conferem ao tema das energias renováveis.
Fonte recorrente do diário piauiense quando o assunto são energias renováveis, o governador utilizou o espaço para ressaltar a abundância de recursos naturais do estado, como o sol e o vento, além de garantir que o Piauí possui um ambiente institucional favorável que o torna uma opção atraente para investidores europeus interessados na transição energética.
Em Londres, o governador revelou ao Meio Norte a pauta da reunião com empresários do setor energético: “explicamos para eles sobre o avanço na geração de energia limpa no Piauí e sobre outras vantagens competitivas que nosso estado tem, inclusive a posição geográfica estratégica, que vai facilitar a exportação do hidrogênio verde para o mundo todo”, afirmou.
O portal do Jornal do Commercio, de Pernambuco, foi o meio de comunicação que apresentou menos matérias no período estipulado pela pesquisa do Intervozes. Ainda assim, a posição da governadora Raquel Lyra (PSDB) não difere daquela defendida por seus pares quando o assunto é a instalação de empreendimentos eólicos e solares em solo pernambucano.
Em março de 2023, a governadora se reuniu com o presidente da multinacional Iberdrola, Ignacio Gálan, “para debater a transição energética em Pernambuco”, diz um trecho da matéria do JC. A empresa espanhola controla a Neoenergia, concessionária de energia elétrica do estado de Pernambuco, e possui investimentos no arquipélago de Fernando de Noronha, por meio do programa Energia Sustentável Noronha. O discurso de Raquel Lyra também reza na mesma cartilha dos demais governadores: geração de emprego e renda, desenvolvimento sustentável e transição energética.
No Ceará, a pesquisa apontou que o então governador do estado (e atual ministro da Educação) Camilo Santana (PT) foi a fonte mais ouvida pelo jornal Diário do Nordeste. Ainda enquanto mandatário do estado, ele apareceu em 22,22% das matérias analisadas. Em 2021, ao lançar o projeto de construção de uma usina de hidrogênio verde (combustível produzido a partir da geração de energia eólica e solar) no porto de Pecém, em São Gonçalo do Amarante, o então governador classificou de “momento histórico para a economia” de seu estado.
A então governadora Izolda Cela (PDT), que sucedeu Camilo após seu afastamento do cargo para concorrer a uma vaga no Senado, manteve a política desenvolvimentista com base nas energias renováveis de seu antecessor. As palavras da mandatária expõem de maneira cristalina os objetivos dos governadores nordestinos. Em 2022, ela afirmou que “o desenvolvimento do país passa necessariamente pela redução das desigualdades regionais. Por isso acreditamos que o futuro do Brasil passa pelo Nordeste e pelo Ceará com a assinatura desses memorandos que contribuem para o desenvolvimento econômico da nossa região e com o projeto de produção de uma energia limpa”.
A resistência ao desenvolvimento a qualquer custo
Tanto o governo federal como os governos estaduais compreendem a demanda internacional por energias renováveis como uma janela de oportunidade para desenvolver a região Nordeste. Em linhas gerais, a emergência da transição energética promoverá a continuação da agenda desenvolvimentista que marca a história do país.
Regidos por interesses econômicos e desenvolvimentistas, essa é uma agenda estratégica do governo brasileiro que vem subsidiando e desonerando investimentos privados no setor. Em maior ou menor escala, o Banco do Nordeste (BNB) é o grande fiador dos grandes empreendimentos verdes da região, com linhas específicas de financiamento que visam converter o Nordeste no novo polo de industrialização do país.
Acontece que o Brasil está viabilizando uma alternativa ao uso do petróleo e demais combustíveis fósseis de maneira afoita, sem levar em consideração os graves impactos sociais gerados (conflitos territoriais, ameaças à fauna e a flora, problemas de saúde).
Na contramão dessa retórica, estão aqueles diretamente impactados de forma negativa pelo projeto desenvolvimentista a partir das energias renováveis, ditas “limpas”: mulheres agricultoras do Polo da Borborema, quilombolas potiguares, pescadores cearenses, comunidades de fundo e fecho de pasto baianas, entre outros. Segmentos sociais silenciados nas páginas dos veículos analisados.
Longe de serem contrários ao progresso e à geração de emprego e renda, o grupo de comunidades afetadas pela expansão dos empreendimentos de geração de energia eólica e solar defende um outro modelo de produção energética renovável em que o lucro e o desenvolvimento não prevaleçam sobre a vida das pessoas, mas que leve em consideração os impactos acarretados e que seja dotado de salvaguardas e medidas de mitigação de efeitos socioambientais. Em suma, o grito dos impactados pelos empreendimentos verdes consiste na experiência que um outro modelo de geração de energia solar e eólica é possível.
Fonte: Brasil de Fato