Por Juan Felipe Sanchez
Advogado
Introdução
Hoje, assim como o setor elétrico, o sistema financeiro sofre uma revolução em razão das inovações tecnológicas, sendo grande parte delas atrelada a uma economia descentralizada, como é o caso dos tokens registrados por meio da blockchain[1].
Dessa forma, vale esclarecer que se trata, basicamente, da possibilidade de que ativos reais, tais como usinas e energia, sejam transformados em ativos digitais. Entretanto, considerando as dúvidas e incertezas que pairam sobre esse novo modelo, é importante mapear os benefícios e desafios, de modo a possibilitar, com segurança e eficiência, essa nova alternativa de financiamento para os desenvolvedores e de investimentos para interessados em investir em projetos de energia.
[1] A Blockchain é baseada em “assinaturas digitais”, de modo que as transações realizadas por meio desta tecnologia são registradas a partir de uma prova de trabalho (validação da transação por qualquer terceiro que possua um computador com capacidade suficiente de processamento, realizando a resolução de problemas matemáticos complexos), em um bloco criptografado, contínuo e justaposto com outros blocos igualmente criptografados – formando, como o nome diz, uma corrente de blocos. As transações realizadas por meio desta tecnologia, após validadas, são inscritas no Blockchain, não podendo ser alteradas. Ademais, a realização de uma nova transação implica na análise e validação de toda a cadeia de blocos anterior, o que garante a segurança da rede como um todo.
O Conceito de Tokenização no Financiamento de Projetos
Primeiramente, buscando esclarecer como se aplicam os tokens ao Project Finance, traz-se, brevemente, a ideia da conversão de algum bem, tais como equipamentos, crédito de energia ou direitos sobre contratos de compra e venda de energia (“PPA”), em algum ativo digitas (conforme a Lei nº 14.478/2022) ou em criptoativos (consoante Parecer de Orientação nº 40 da CVM).
Ou seja, algum ativo que existe no mundo real, ainda que incorpóreo, como os créditos de energia ou direitos autorais, poderá ser transplantado para o mundo virtual na forma de um token/certificado digital – registrado na blockchain.
Os tokens permitem maior flexibilidade e liquidez, podendo representar frações de um bem, dividindo, eventualmente, em múltiplas partes os direitos a um imóvel. Essa maleabilidade, por sua vez, permite maior agilidade na negociação e de maneira segura, haja vista a inexistência de quebras e invasões (“hacks”) ao sistema de segurança atrelado ao blockchain.
Assim, ao trazer a tokenização para o âmbito do financiamento de projetos, é possível que uma maior gama de investidores, em qualquer lugar do mundo e com as demais vantagens dos criptoativos, adquiram tokens que representem uma participação no projeto – o qual poderá ser atrelado aos direitos do terreno que se situe, dos equipamentos que o componha ou da energia que seja gerada pelo projeto. Nesse sentido, é evidente que se desbloqueia uma nova alternativa de captação de recursos, para desenvolvedores, e de veículo de investimento.
Nessa linha, destacamos 3 benefícios que a tokenização proporciona ao financiamento de projetos:
1. Acesso a um Mercado Global
Ao se emitir um token referenciado a um ativo (asset-backed token)[2] , representando eventuais recebíveis de um PPA ou participação nos créditos de energia de uma usina, extingue-se a limitação espacial do aporte. Dessa forma, não é necessário que o investidor consolide domicílio no Brasil ou sequer constitua algum representante legal, uma vez que, por meio da blockchain, os tokens podem ser negociados de onde quer que seja.
Essa expansão se mostra extremamente vantajosa na medida que atrai maior visibilidade aos projetos, conectando investidores e empreendedores que, normalmente, não se encontrariam.
Logo, essas pontes, por sua vez, além de possibilitar o intercâmbio de conhecimento, servem para gerar valor diante das assimetrias das economias globais, de tal maneira que, hoje, um investidor no Japão, cuja taxa de juros é próxima de zero[3], poderia acessar a um investimento seguro e de maior rentabilidade, enquanto o desenvolvedor no Brasil, que enfrenta uma taxa de juros altíssima[4], poderia captar recurso a um custo de capital menor.
2. Distribuição e liquidez
Considerando que a tokenização permite o fracionamento de quaisquer ativos sem requisito de percentual mínimo, grande projetos podem ser distribuídos em milhares de tokens de baixos custos, permitindo maior adesão e flexibilidade para que cada investidores ajuste a sua participação de acordo com a sua capacidade financeira. Da mesma forma, na mesma lógica das ações de empresas listadas em bolsa, os detentores desses ativos virtuais poderão negociá-los livremente no mercado, oportunizando maior liquidez a esses criptoativos e liberdade para os investidores.
[2] COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS; PARECER DE ORIENTAÇÃO CVM nº 40, DE 11 DE OUTUBRO DE 2022. p.5.
[3] Taxa de Juros Japão em percentuais negativos. Japão – Taxa De Juro. Disponível em: https://pt.tradingeconomics.com/japan/interest-rate Acesso em: 24.05.2023.
[4] Taxa de Juros do Brasil em 13,75% ao ano. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/controleinflacao/historicotaxasjuros Acesso: 24.05.2023.
3. Eficiência e Transparência
Somado, vale apontar que a tokenização facilita os procedimentos de captação de recursos/investimentos, uma vez que o desenvolvedor dispõe de meios muito menos burocráticos do que buscar financiamento junto a um banco ou perante o mercado de capitais.
Assim, o empreendedor pode, por exemplo, simplesmente confeccionar e distribuir NFTs nas diversas plataformas que existem, totalmente online, sem incorrer em gasto de recursos e tempos desnecessários.
Vale destacar que a transação é feita pela rede blockchain, eliminando-se diversos intermediários, como gestores e custodiantes dos recursos financeiros – o que reduz custos relevantes. Mais do que isso, a natureza da rede blockchain faz com que a operação seja registrada em um livro-razão facilmente auditável, seguro e rastreável, isto é, um registro cujo conteúdo pode ser sempre verificado, mas jamais alterado – conferindo, portanto, maior confiança ao investidor.
Desafios
Apesar de todos os benefícios expostos acima, a disseminação dos ativos virtuais ainda enfrentam diversos desafios, sendo um deles o grande dispêndio de energia para a sua implementação[5].
Para tanto: “Apesar de essas tecnologias não estarem, em si, sujeitas a regulamentação no âmbito do mercado de valores mobiliários, é importante destacar que, a depender da sua natureza e características, os serviços ou ativos desenvolvidos por meio delas podem estar sujeitos a regimes regulatórios específicos, nos termos da legislação aplicável.”[6]
E, mais do que isso: ““O conceito de valor mobiliário tem natureza instrumental e objetiva delimitar o regime mobiliário e, consequentemente, a competência da CVM14. Dessa forma, nas hipóteses em que determinado criptoativo é valor mobiliário, os emissores e demais agentes envolvidos estão obrigados a cumprir as regras estabelecidas para o mercado de valores mobiliários e poderão estar sujeitos à regulação da CVM.”[7]
Porém, em que pese os tokens lastreados em algum ativo pareçam se enquadrar no conceito de valor mobiliário, não se tem a definição clara de quem regulará a matéria (CVM ou BACEN).[8]
[5] Para tanto, compara-se que o consumo energético do bitcoin já supera ao consumo da Argentina. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/mercados/bitcoin-ja-consome-mais-energia-que-toda-a-argentina-e-gasto-gera-alertas-de-bill-gates-e-yellen/ Acesso em 24.05.2023
[6]COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS; PARECER DE ORIENTAÇÃO CVM nº 40, DE 11 DE OUTUBRO DE 2022. p.3.
[7]Ibid. p.6. e Conforme entendimento da CVM no PA nº 19957.010938/2017-13, de 30/01/2018.
[8]BRASIL; LEI Nº 14.478, DE 21 DE DEZEMBRO DE 2022. “Art. 1º Parágrafo único. O disposto nesta Lei não se aplica aos ativos representativos de valores mobiliários sujeitos ao regime da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, e não altera nenhuma competência da Comissão de Valores Mobiliários.”
Essas regras, por sua vez, são necessários justamente para proteger os investidores e a integridade do financiamento do projeto. Sendo o caso de financiamento de projetos de infraestrutura, os desafios aumentam em função das exigências regulatórias de cada setor, sejada ANEEL e CCEE para comercialização de energia ou da ANP em questão envolvendo distribuição de gás natural, por exemplo.
Não obstante, embora a rede blockchain seja confiável, não é raro vislumbrar a ocorrência de ataques cibernéticos ou falhas por parte dos investidores e prestadoras de serviços de ativos virtuais (exchanges) que gerem vazamento de senhas de acesso às carteiras.
Igualmente, também é corriqueira a notícia de fraudes atreladas aos criptoativos, uma vez que se trata de tema pouco conhecido pela população em geral, abrindo margem para que oportunistas, abusando da assimetria informacional, lesem investidores.
Finalmente, aplica esse novo sistema dos tokens ao Project Finance não é tarefa fácil, haja vista que a natureza das transações no mundo digital deve ser conciliada com o ciclo de desenvolvimento dos projetos de infraestrutura.
Ademais, a lógica por trás dos ativos digitais não é de simples compreensão, gerando dúvidas e incertezas sobre a viabilidade e garantias desse meio de captação de recursos – enquanto não consolidado no mercado.
O Futuro da Tokenização ao Project Finance
A tokenização é tema recente, de modo que ainda estamos no começo da implementação como meio de financiamento de projetos. O fato é que há um enorme potencial para seu crescimento e evolução, vislumbrando-se claramente as vantagens advinda da quebra de paradigmas tradicionais.
Os tokens são disruptivos e tendem a democratizar tanto o acesso aos recursos para empreendedores quanto para investimentos para investidores, sejam pequenos cidadãos poupadores ou grandes players do setor.
Além do mais, como já sinalado, os tokens estão reformulando a maneira como os projetos serão avaliados para realização de aporte. A descentralização, extinção de barreiras e transparência são exemplos dos diversos benefícios atrelados aos ativos virtuais. Embora os obstáculos a serem superados estejam presentes, é inegável o potencial transformador dos criptoativos, sobretudo quando associados a algum setor estratégico.
Nesse sentido, é evidente que, com a evolução do mercado em torno da blockchain, os reguladores, especialmente CVM e BACEN, e a legislação (praticamente inexistente) deverão buscar acompanhar o ritmo das inovações tecnológicas e comerciais dos tokens.
Porém, com o amadurecimento da aplicação dos ativos virtuais ao Project Finance, espera-se que possa ser aumentado o número de projetos a serem implementados, proporcionando, pois, mais oportunidades de negócios para os agentes econômicos enquanto se promove o bem comum por meio do desenvolvimento de infraestrutura essencial para país – demanda urgente da população brasileira.